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Colônia penal de Clevelândia
Criação
A colônia agrícola
As memórias dos prisioneiros frequentemente confundem Clevelândia com a região onde estava inserida, o Oiapoque, à época pertencente ao estado do Pará[1] e atualmente ao Amapá. O Oiapoque situa-se na fronteira com a Guiana Francesa e foi uma zona de disputas territoriais com a França até sua incorporação definitiva ao território brasileiro em 1900.[2] A região era considerada um espaço vazio, e sua ocupação era estudada pelas autoridades brasileiras desde a década de 1890. Em 1919 o Congresso aprovou a proposta do senador Justo Chermont de fundar patronatos e colônias nacionais ao longo do rio Oiapoque. O senador alertava para os contrabandistas que se aproveitavam da ausência de policiamento, fiscalização e defesa militar naquela área.[3][4] A colonização eliminaria as influências francesas da região e asseguraria a soberania brasileira.[5]
A colônia foi implantada na margem direita do rio Oiapoque, a 15 quilômetros do posto militar de Santo Antônio,[6] a alguns quilômetros rio acima da vila de Martinica.[7] A vila de Saint Georges ficava do lado oposto (francês) do rio.[8] Os primeiros colonos, retirantes da seca no Nordeste, chegaram em maio de 1921.[6] Segundo Rocque Pennafort, a população era de dois grupos distintos, um que acompanhou o coronel Chico Pennafort e outro de famílias cearenses trazidas de Belém pelo governo. Acreditava-se que a região fosse um "Eldorado" de terras férteis, apresentadas na propaganda do governo por fotografias de uma mandioca e uma cana-de-açúcar gigantes.[9] A salubridade da região era atestada por um relatório assinado em 1922 pelo diretor do Serviço de Profilaxia Rural do Pará.[10] Em 5 de maio de 1922 inaugurou-se o "Centro Agrícola Cleveland", homenagem a Grover Cleveland, presidente dos Estados Unidos que serviu de árbitro na questão de Palmas.[6]
O engenheiro-chefe, administrador e fundador da vila era Gentil Norberto.[11] A área urbana do núcleo era planejada, fato inédito para os povoados da região.[12] Até 1924 construíram-se um prédio de dois andares para a administração, uma escola com duas salas de aula, um hospital, enfermaria, hospedaria de imigrantes, posto telegráfico, serraria, igreja, várias residências e 28 quilômetros de caminhos vicinais.[6] Mas o entusiasmo inicial foi perdido e os colonos que não tiveram sucesso com a agricultura migraram para Martinica, onde encontraram trabalho nas usinas de pau-rosa. Em 31 de dezembro de 1926, Clevelândia tinha uma população de 127 colonos e 77 funcionários e comerciantes, desconsiderando prisioneiros e soldados. Os recém-chegados no período da colônia penal encontraram um clima de abandono no povoado.[13]
Transformação em colônia penal
O governo federal de Artur Bernardes (1922–1926) transformou Clevelândia no destino mais numeroso de prisioneiros políticos,[14] num contexto de um estado de sítio duradouro, cadeias superlotadas, detenções em massa e desterro.[15] Militares tenentistas derrotados nas suas revoltas armadas contra o governo, militantes operários (incluindo anarquistas), criminosos comuns e "indesejáveis" retirados das ruas do Rio de Janeiro tiveram Clevelândia como presídio a partir de 1924.[14] Pelo artigo 80 das Disposições Gerais da Constituição de 1891, o presidente poderia, durante o estado de sítio, recorrer ao desterro para manter a ordem e a lei.[10] No caso de Clevelândia, uma justificativa adicional seria um dispositivo constitucional que atribuía à União o domínio da faixa de fronteira necessária à defesa nacional[16]
Segundo Bernardes, a ideia de deportar os prisioneiros a Clevelândia não era dele, mas de seu ministro da Agricultura, Miguel Calmon, ou de Gentil Norberto.[17] Conforme o ex-ministro Calmon, "o governo só deportou para Cleveland em último caso e forçado pelos pedidos de habeas corpus ao Supremo Tribunal Federal, que não permitiam a conservação dos presos aqui" [em navios-prisão e ilhas da baía de Guanabara], e "os deportados para Cleveland foram presos que tinham os piores antecedentes e sem nenhum título especial que os recomendassem".[18][19]
Miguel Calmon apresentou ao presidente estabelecimentos do Ministério da Agricultura com espaço para receber os prisioneiros: a Ilha das Flores, os núcleos coloniais do Paraná e de Santa Catarina e os centros agrícolas da Paraíba, Piauí, Pará (ou seja, Clevelândia) e Amazonas. Segundo ele, a Ilha das Flores e Clevelândia seriam os únicos viáveis, pois os demais estavam em territórios com perigo de revoltas ou os governadores de seus estados não queriam hospedar prisioneiros políticos.[16]
Clevelândia era a colônia agrícola mais remota de todo o país, garantindo o isolamento dos presos e a impossibilidade de defesa jurídica.[19][20][21] Os prisioneiros seriam punidos pelos seus crimes ao mesmo tempo que contribuiriam à ocupação da fronteira.[22] A medida tem antecedentes no Brasil republicano, também na selva equatorial, quando centenas ou até milhares de indivíduos foram deportados para Tabatinga, Xingu, o alto Rio Branco e o Acre no governo de Floriano Peixoto e no pós-Revolta da Vacina. Esse tipo de punição em regiões inóspitas pode ser comparada à Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, ao domicilio coatto (confinamento em ilhas do Mediterrâneo) italiano, à prisão argentina em Ushuaia e ao gulag russo.[23] O isolamento era tamanho que não havia ligação telegráfica direta a Belém; a comunicação passava pela Guiana Francesa a Paris e dali a Recife e Belém.[24]
Pontos de vista
Os acontecimentos em Clevelândia não chegavam á imprensa como um todo, que estava sob censura durante o estado de sítio declarado pelo governo Bernardes.[25] Deputados oposicionistas na Câmara denunciaram muitos abusos ocorridos durante o estado de sítio, mas não mencionaram Clevelândia.[26] Os recém-chegados não sabiam o que os esperava. As notícias só começaram a sair do local em setembro de 1925, quando uma carta do militante Domingos Braz foi publicada no jornal A Batalha, de Lisboa.[27] Em dezembro de 1925 outra carta foi publicada pelos jornais La Antorcha, de Buenos Aires, e O Syndicalista, da Federação Operária do Rio Grande do Sul.[28] Mas somente ao final do mandato e do estado de sítio a história repercutiu na opinião pública e a grande e pequena imprensa trouxeram depoimentos dos sobreviventes.[25][29][30]
Jornais governistas e oposicionistas debateram quais seriam as reais condições do local no início de 1927, quando os presidiários já haviam sido anistiados. A oposição pode ser exemplificada pelos jornais O Combate e A Nação, que representavam interesses do Partido Democrático de São Paulo, tenentistas e Bloco Operário e Camponês, e A Plebe, representante dos anarquistas. A defesa do ex-presidente Bernardes e de seu governo pode ser encontrada no jornal carioca O Paiz.[31] O jornal de Justo Chermont fez reportagens sobre a beleza e bom clima de Clevelândia, e Gentil Norberto viria a público defender o local.[32]
A oposição denunciou os "horrores" e a "hecatombe de Clevelândia", "o extermínio de presidiários" e "os crimes do governo Bernardes".[33] A imprensa contemporânea e a historiografia associam Clevelândia ao desterro, degredo e vazio demográfico. Expressões como "inferno verde", "Sibéria brasileira, "jardim dos suplícios", "desterro da peste e da morte", "selvas pestilentas" e "lugar inóspito" eram comuns nos jornais.[34] O local entrou para a memória anarquista como um símbolo de opressão, a "Bastilha brasileira".[35]
As revelações colocaram a imprensa governista na defensiva.[36] Na matéria "A indústria da demagogia e o filão da Clevelândia", o jornal criticou as publicações oposicionistas.[37] O jornal amenizou a imagem do local,[38] chamando-o de "comuníssima colônia agrícola"[39] e umas "pacíficas plantações de mandioca".[40] Invertendo as acusações, asseverou que "esses que hoje clamam de ramo de oliva em punho, pela paz geral, que foram eles mesmos que atearam e alimentaram a fogueira da rebeldia que tantos anos vem encharcando de sangue o território nacional",[41] e que "se não tivesse havido revolução o governo também não teria sido forçado a tomar algumas medidas severas".[40]
Para o historiador Carlo Romani, a historiografia deixou a história de Clevelândia cair no esquecimento.[42] O silêncio oficial sobre a região foi quebrado pela própria Biblioteca do Exército com a publicação de Clevelândia do Norte, do padre Rogério Alicino, em 1971.[3] Alicino tinha afinidade com os interesses do Estado e baseou-se em documentos oficiais.[43] Seu livro dedicou apenas cinco páginas à experiência penal;[44] segundo Romani, "o primeiro trabalho extenso sobre o episódio foi um capítulo no livro de Paulo Sérgio Pinheiro", Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil (1922-1935) (1991).[45] Pinheiro focou na repressão do Estado e nas lutas sociais.[46] Historiadores locais atém-se à história oficial, buscando evitar que a história do Oiapoque seja maculada pelo curto espaço de tempo em que o campo de prisioneiros existiu.[47]
Alexandre Samis, autor de Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil (2002), teve perspectiva semelhante a Pinheiro. Ele e Romani têm afinidade ideológica ao anarquismo ou ao socialismo libertário.[48] Para um historiador adicional de Clevelândia, Edson Machado de Brito, Pinheiro, Samis e Romani apresentaram, cada um a seu modo, a colônia penal como "marco da derrota da resistência". Ele, por outro lado, enfatiza que as dissidências não foram exterminadas no local.[49]
Funcionamento
Transporte e número de detentos
O número exato de prisioneiros e óbitos em Clevelândia foi uma preocupação constante da imprensa em 1927 e da historiografia a partir da obra de Paulo Sérgio Pinheiro.[50]
Conforme o relatório oficial examinado por Paulo Sérgio Pinheiro, havia um total de 946 presidiários, dos quais 408 eram de Catanduvas, 419 do Rio de Janeiro e 119 do Amazonas. 262 evadiram e 491 morreram, especialmente de desinteria bacilar, impaludismo e tuberculose.[51] Carlo Romani, com base na “classificação elaborada pela polícia nas listas de envio”, quantifica um número oficial de cerca de 1 200 degredados, dos quais metade sucumbiu às doenças tropicais. A preocupação em chegar a um número exato existe desde 1927. Em 7 de janeiro, A Nação anunciou uma lista completa com 325 mortos em Clevelândia. Em 4 de fevereiro, um ex-sargento da Armada, encarregado do cemitério local, declarou ao jornal que faleceram 650 prisioneiros, sem contar os que morreram nas fugas.[50]
recebeu seu primeiro paquete de prisioneiros em 26 de dezembro de 1924.[52] O número de prisioneiros transportados ao local varia, conforme as fontes, de 946 a 1 630. A primeira cifra é subdividida em 419 prisioneiros de origens diversas, oriundos do Rio de Janeiro, 119 praças tenentistas do Exército e Marinha que haviam se revoltado no Amazonas e no Pará, e 408 militares tenentistas derrotados na batalha de Catanduvas, na Campanha do Paraná.[53][54]
Origens dos militares enviados[55]
Cuiabá em 22 de maio de 1925[56]
Trajetória de João Baptista de Araújo[57]
anarquistas de junho de 1925 vieram dos navios-prisão ancorados na costa do Rio de Janeiro[58]
Muitos não respondiam a qualquer inquérito policial[59]
Os anarquistas notavam em Clevelândia uma ausência de seus rivais no meio operário, os comunistas, e chegavam a supor que eles estivessem aliados ao governo Bernardes.[60] Do ponto de vista comunista, o jornal A Nação rebateu o que chamou de "calúnias" dos anarquistas e afirmou que muitos dos "nossos companheiros padeceram em Clevelândia".[41] Alexandre Samis não encontrou o nome de nenhum comunista enviado à colônia.[61] Para Romani, a repressão oficial foi a principal causa do declínio do anarquismo na década de 1920.[41]
Diferenças de números entre Rogério Alicino e Alexandre Samis[44]
Segundo o rebelde paulista Manoelzinho dos Sanots, eram 1 630 prisioneiros[62]
Segundo o jornal O Combate, Gentil Norberto vivia em Belém e nunca passava mais de 24 horas na Colônia.[11]
Gatunos, ex-alunos da Escola Militar[36] 15 líderes anarquistas[60] Até setembro de 1925, quatro faleceram, quatro fugiram e os demais permaneciam na colônia.[63]
Um primeiro navio chegou em 26 de dezembro de 1924 com cerca de 250 pessoas: operários do Rio de Janeiro, marginais, vadios e conspiradores da Marinha.[64] Um segundo navio chegou em 5 de janeiro de 1925 com 120 rebeldes da região amazônica.[64]
O cargueiro Cuiabá deixou o porto de Paranaguá com os prisioneiros de Catanduvas no início de junho de 1925 para uma viagem de 21 dias até o Oiapoque. Numa escala no Rio de Janeiro para abastecer água e carvão, ele recebeu 23 "conspiradores" e cerca de 130 criminosos comuns e mendigos.[65]
"Profilaxia social"[65]
Geografia e organização
Isolados na floresta amazônica, tinham o rio Oiapoque e a própria mata como muros.[66] libertários eram o grupo mais coeso[67] os anarquistas encontraram tempo para palestras, canções e estudos durante os momentos de ócio[68][69] alfabetização de filhos de colonos[70] Vários escreveram poemas nesse período.[71] O 1.° de maio de 1925 foi celebrado por alguns anarquistas e colonos com o cântico da Internacional.[64] regime semiaberto[72]
Os militares que fizeram mea culpa pela sua participação no levante foram privilegiados com cargos na administração e no hospital.[73] Os prisioneiros conviveram com os colonos originais da região. A reação inicial dos colonos foi de medo, mas muitos dos prisioneiros acabaram aceitos em seu meio.[74]
Quando os barracões não deram conta de alojar todos os prisioneiros, os excedentes dormiram sob as árvores ou o assoalho das casas até construírem pequenos abrigos nas horas livres.[75]
A mão-de-obra dos presos construiu uma capela, uma escola e a Ponte Artur Bernardes e ampliou o Hospital Simão Lopes.[75] construções[76]
Conforme a narrativa oficial do padre Rogério Alicino, publicada em 1970, "a chegada, dentro em prazo breve, de mais de mil pessoas, criou problemas de peso na vida da Colônia. [...] Em primeiro lugar, escassearam os alojamentos. O Engenheiro Gentil Norberto mandou construir outras casas, além de um grande barracão situado perto da atual serraria, ajudando-se da mão de obra dos próprios presos. [...] A fim de desfrutar de toda a mão de obra, agora até de sobra, foi construída, perto do lugar denominado Sibéria, uma usina para a extração da essência de pau-rosa [...] Os presos, de seu lado, não deixaram de empecilhar a vida da Colônia. Entre eles havia duas categorias: os políticos e os criminosos; estes em maior número e de ‘péssimos antecedentes’, segundo afirma o Senador Calmon".[77]
Condições de vida e trabalho
Sujeitos urbanos do Brasil meridional foram transferidos a costumes, paisagens e clima estranhos.[66] Segundo Calmon, a colônia era "perfeitamente instalada, com recursos suficientes para distribuir uma alimentação abundante e dotada de um excelente hospital. Nada faltou em matéria de alimentação e assistência médica"[78] O jornal alegou que as epidemias eram ocasionais, trazidas do Sul, e assolaram vários lugares, e não só Clevelândia. Inquéritos oficiais em 1925 e 1926 determinaram que a alimentação, alojamento e integridade física dos prisioneiros estavam garantidas.[79]
Os prisioneiros recebiam chapéus de palha, paletó e calças de brim azul e trabalhavam nove horas diárias em diversos serviços determinados pelo Centro Agrícola. Os trabalhos mais pesados eram a capinação de roça e carregamento de toras de madeira do rio à serraria; eles eram inicialmente reservados aos criminosos comuns e depois partilhados com os veteranos de Catanduvas. O trabalho em Clevelândia não era remunerado. Os serviços particularmente pesados eram recompensados com cigarros, e os serviços de maior responsabilidade (mecânicos, eletricistas, cozinheiros do hospital e escriturários) recebiam gratificações anuais de dez a 200 mil-réis.[80] Domingos Passos e outros prisioneiros auxiliavam o serviço de enfermagem[81] Segundo Gentil Norberto, os prisioneiros não foram maltratados, somente os criminosos comuns precisaram trabalhar, e por apenas quatro horas e meia por dia, na limpeza da sede e outros serviços, recebendo cigarros e pequenas remunerações. Após a chegada dos deportados, uma de suas primeiras iniciativas teria sido a proibição rigorosa do castigo corporal. Qualquer abuso ocorreu "nunca com o apoio ou a anuência da administração".[82]
O diretor da seção de Estado (?), Oldemar Murtinho, apresentou ao Ministério da Agricultura um relatório sobre o local. O documento objetivava uma apresentação positiva da Clevelândia, mas descreveu os presos como homens "raquíticos e tristonhos", que andavam como "condenados à morte que seguem para o patíbulo retardando o passo", "dando à impressão de que o impaludismo tornou-os imprestáveis para o resto da vida".[32]
Gentil Norberto usou a mão-de-obra dos presos para construir casas adicionais, um barracão e um trapiche.[62] Concentrada nos presos, a diretoria negligenciou os colonos[83]
O jornal apresentou um documento assinado por mais de vinte ex-presidiários com agradecimentos a Gentil Norberto e demais funcionários, agradecendo "pelo bom trato que ali nos foi dado, além de roupa, calçado, cigarros, chapéis, assistência médica e hospitalar, boa e farta comedoria e respectivo agasalho nas hospedarias construídas para tal fim".[84] Mas conforme denúncia de muitos presos retornados, eles foram obrigados, ao passarem por Belém, a assinar um documento declarando nunca ter sofrido violência ou privação.[85]
Trabalho forçado, doenças e torturas[51] fuzilamentos simulados pelos guardas[86] "umbigo de boi" (chicote de açoite), palmatória e cafua, que era um pequeno quarto com telhas de zinco e calor sufocante.[76]
Espancamento por outros presidiários[87] hospital[88] governo organizou grupos de presidiários com depoimentos favoráveis, mas as denúncias ecoaram muito mais[89] geladeira francesa[90] fiscalização colocada sob responsabilidade de prisioneiros comuns[91][73] Umidade e calor intensos, condições insalubres, sem condições de tratar das enfermidades[92] Everardo Dias descreveu os sobreviventes "curvados, magros, amarelados, sem coragem, sem ânimo e sem vitalidade", em cujos "rostos escaveirados e cor de cera apenas os olhos sobressaíam... no mais pareciam múmias"[68][93]
Nas trincheiras de Catanduvas, aqueles militares já estavam desnutridos, doentes e em sua maioria, descalços e seminus. Enfileirados e vigiados por guardas armados, caminharam mais de 100 quilômetros até a estação ferroviária de Irati.[65] No percurso de navio, eram alimentados pela manhã com um pouco de mate e um biscoito. A alimentação principal consistia em feijão fradinho e pouco mais de cem gramas de carne verde mal cozida. A comida descia pela mesma abertura pela qual subiam os dois barris de madeira nos quais os prisioneiros urinavam e defecavam.[94]
Mortalidade
Segundo Bruno de Almeida Magalhães, biógrafo de Artur Bernardes, "a despeito da salubridade do local, houve uma epidemia de febre tifoide, em que pereceram alguns prisioneiros", mas "toda a lenda acerca de Clevelândia foi irrespondivelmente refutada pelo senador Miguel Calmon, Ministro da Agricultura durante o governo de Bernardes, durante as sessões de 29 e 30 outubro de 1927, sem ter sofrido a menor contestação". Essas alegações são contraditas pela elevada mortalidade dos prisioneiros demonstrada pela bibliografia especializada.[95]
era a leva em piores condições de saúde[96] quando chegaram os prisioneiros de Catanduvas, já havia mortes entre os prisioneiros das levas anteriores[97]
Após a chegada dos prisioneiros de Catanduvas, eclodiu uma epidemia de disenteria bacilar entre os presos e colonos[98] Segundo Lauro Nicácio, a qualidade e quantidade do alimento diminuiu após Deocleciano Coelho de Souza assumir a direção da colônia em julho de 1925[81] Na sua argumentação, Miguel Calmon ressaltou que a disenteria bacilar matou muito mais prisioneiros do que o impaludismo, doença endêmica da região[99]
Segundo o relatório de Oldemar Murtinho, o primeiro livro de registros foi extraviado. Com ele, perderam-se dados sobre 88 mortes.[100]
Segundo Lauro Nicácio, o número de óbitos chegou a doze por dia.[101] O sepultamento era inicialmente um trabalho exclusivo de criminosos e vadios do Rio de Janeiro.[101]
Os mortos anarquistas incluem Pedro Mota, José Maria Fernandes Varella, Nicolau Paradas, Ninio Martins e José Alves do Nascimento, este último, ex-secretário da União dos Operários em Construção Civil.[64]
"pela manhã, todos eram obrigados a juntar os corpos dos presidiários que tinham morrido durante a noite"[102]
Os tratamentos no Hospital Simão Lopes limitavam-se a comprimidos ou injeções de quinino. O hospital aplicava 120 injeções por dia com apenas duas agulhas, que ficaram rombudas com o uso intensivo, provocando úlceras e edemas na pele.[103] Os cem leitos do hospital e 88 da enfermaria não eram suficientes, e muitos doentes aguardaram uma vaga no lado de fora.[101]
Sobreviventes voltaram amarelados, magros e curvados, com fígado enfermo e pés inchados. Alguns morreram dias depois da chegada.[104]
Um porta-voz do governo Bernardes declarou em 1928 que a mortalidade fora de aproximadamente 43%[93]
O número de mortos teria sido exagerado para atacar o governo.[79]
Carlo Romani caracteriza o local como um campo de concentração. O próprio Arquivo Artur Bernardes usa o termo, mas é preciso levar em conta que antes do nazismo o campo de concentração não tinha a conotação de um campo de extermínio planificado.[72] Para o jornal A Noite, "Bernardes encontrara uma forma legal de extermínio, sem necessidade de recorrer à guilhotina e ao fuzil"[59]
Perdurou na memória popular a história de um preso, condenado à morte, que teria cantado à beira de uma cova:[105]
Adeus rio Oiapoque,
sepulcro dos infelizes
a ouvir minhas preces
até as pedras se maldizem.
Já não vejo minha mãe,
pois me falta a liberdade.
Quanto é triste ter saudade.
Quanto é triste ter saudade.
Fugas
O contingente de guardas era muito pequeno para a vastidão do perímetro, que era fácil de evadir. A floresta em si era o obstáculo maior.[100] Por volta de junho de 1925, as fugas anteriores já haviam deixado a administração mais atenta. Conforme Lauro Nicácio, qualquer suspeita de plano de fuga levava ao espancamento, e vários pescadores foram presos e tiveram suas embarcações confiscadas.[106][80] Segundo Domingos Braz, a maioria das fugas ocorreram pelo planejamento em grupo. O primeiro a fugir foi o operário Pedro Carneiro, em 17 de fevereiro de 1925, mas este foi por conta própria. Ele chegou a Belém e foi dali ao Rio de Janeiro, de onde arrecadou 300 mil réis para seus camaradas na Clevelândia.[107] A última fuga de militantes ocorreu na madrugada de 11 para 12 de dezembro de 1925.[108]
Vários morreram por falta de medicamentos em Saint George[109]
Os anarquistas Domingos Braz, Nino Martins, Pedro Mota, Manuel Ferreira Gomes, José Batista da Silva, Tomás Deslits Borges e José Martins Fernandes Varella conseguiram fugir para Saint-Georges, na margem francesa do rio Oiapoque. Após um mês de estadia, eles ainda estavam desempregados e os recursos enviados por amigos se esgotaram. Não havia dinheiro para uma viagem até Belém ou Caiena. Em 12 de março de 1927, Pedro Mota comunicou a morte de Ninio, Varella e Paradas ao jornal A Plebe. Em 12 de janeiro de 1928, uma carta enviada a São Paulo noticiou o falecimento de Mota em Saint-Georges. Mas vários dos fugitivos conseguiram deixar o povoado; Domingos Braz e outros foram a Belém, Biófilo Panclastro foi a Caiena e partiu de canoa à Colômbia e o pedreiro José Batista da Silva internou-se na floresta e, para surpresa de todos, apareceu em Belém.[110]
Legado
"os sobreviventes da Clevelândia pedem perdão por terem se insurgido contra um governo tão honesto e um presidente tão digno"[111]
Referências
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