Litigância de má-fé
Litigância de má-fé é um conceito do Direito processual que descreve um dos diversos casos possíveis onde uma das partes de um processo, autor, réu ou interveniente, litiga intencionalmente com deslealdade e/ou corrupção, prejudicando intencionalmente a parte adversa ou o próprio sistema judiciário.[1]
É aplicado desde o direito romano,[2] antes mesmo de se conceber os recursos, quando se penalizava o litigante de má-fé: o demandado "na actio judicati" podia articular em sua defesa a "revocatio in duplum" (...) mas se sujeitava, no simples caso de sucumbência, à condenação dobrada ("duplum").[3][4][5]
Atualmente, o conceito está presente, expressamente ou não, no direito pátrio de diversos países,[1] e visa a previsão de uma condenação para aqueles que se utilizam de expedientes a princípio legítimos do sistema judiciário como artimanha para prejudicar terceiros, formulando pretensões destituídas de qualquer fundamento.[6][7] Diversas legislações abordam condutas específicas ou manobras dilatórias cujo objetivo seja impedir o regular andamento do processo, sendo consideradas, portanto, litigância de má-fé.[2] A coibição à ligitância de má-fé é considerada importante para desestimular o excesso de demandas judiciais desnecessárias[1], propostas por litigantes que sabem, de antemão, não terem, nem de longe, qualquer tipo de razão.[6][1]
Por país
[editar | editar código-fonte]Alemanha
[editar | editar código-fonte]Não há proibição expressa à conduta dolosa das partes no processo, mas existem comportamentos específicos que são reprimidos, como por exemplo, a desonestidade das partes. Neste caso, é necessária a propositura de ação judicial independente com o objetivo de se obter indenização dos prejuízos sofridos pela parte.[1]
Argentina
[editar | editar código-fonte]Há previsão de imposição de multa à parte, ao advogado, ou a ambos, conjuntamente, sempre que for constatada a má-fé. Ao litigante de má-fé pode ser estabelecida uma condenação que varia de cinco a trinta por cento do valor da causa. Uma vez que seja impossível auferir o valor da causa, a indenização é norteada por valores pré-estabelecidos.[1]
Áustria
[editar | editar código-fonte]É considerada a primeira legislação pátria a consagrar o dever de veracidade de forma inequívoca, além de prever a responsabilidade por danos derivados da prática processual.[1]
Brasil
[editar | editar código-fonte]A definição de litigância de má-fé variou no Brasil ao longo do tempo.[1] O Código de Processo Civil de 1939, por exemplo, definia a litigância de má-fé como "espírito de emulação, mero capricho, ou erro grosseiro", além da "procrastinação da lide". Já o Código de Processo Civil de 1973 mencionava a má-fé e o dano processual, e em referência a estes, previa a condenação do embargante de má-fé a pagar multa ao embargado, multa esta que nunca poderia ser maior do que o percentual de um por cento sobre o valor da causa.[1]
De acordo com o Código de Processo Civil de 2015, Art. 17, Alterado pela Lei 6.771-1980, são hipóteses caracterizadoras da litigância de má-fé:
- deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;[1]
- alterar a verdade dos fatos;[1]
- usar do processo para conseguir objetivo ilegal;[1]
- opuser resistência injustificada ao andamento do processo;[1]
- proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;[1]
- provocar incidentes manifestamente infundados;[1]
- interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. (Acrescentado pela Lei9.668-1998)[1]
- No caso de uma entidade creditícia não aceitar acordo com X, mas aceitar com Y.[1]
- Multa superior a 1% e menor que 10% do valor da causa; [1][nota 1]
- Indenização à parte contrária, e custas advocatícias, cumulativamente.[1]
Os valores indenizatórios podem ser fixados pelo juiz ou liquidados por arbitramento.[1][nota 2]
Durante a década de 2010, pode-se mencionar como exemplo de litigância de má-fé o caso do torcedor do Fluminense Football Club que acionou judicialmente o jornal Meia-Hora após a derrota de seu time na Copa Libertadores da América de 2008, quando, no dia seguinte, o periódico, ao fazer uma piada, dizia na capa que dentro do jornal haveria um pôster do time indo para o Mundial, dando a entender que seria o Mundial de Clubes, mas na verdade, era uma referência cômica aos Supermercados Mundial.[6][7]
Doutrina
[editar | editar código-fonte]Os doutrinadores Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery conceituam o litigante de má-fé como:
- "a parte ou interveniente que, no processo, age de forma maldosa, como dolo ou culpa, causando dano processual à parte contrária. É o improbus litigator, que se utiliza de procedimentos escusos com o objetivo de vencer ou que, sabendo ser difícil ou impossível vencer, prolonga deliberadamente o andamento do processo procrastinando o feito. As condutas aqui previstas, definidas positivamente, são exemplos do descumprimento do dever de probidade estampado no art. 14 do CPC."
“Este preceito demonstra que deve ser penalizada a parte que abusa do seu direito de petição. Apesar de ser garantia constitucional o pleno acesso ao Judiciário (art. 05º incisos XXXIV, a, XXXV e LV da CF) não é correto banalizar tal procedimento, vez que as partes devem agir com prudência, lealdade e boa fé, devendo, portanto, ser punidos aqueles que abusam de suas pretensões, desde que, obviamente, comprovado que tal conduta foi maliciosa (má-fé)”. [8]
A condenação pode alcançar mais de um litigante, segundo o interesse na causa. Pode ocorrer por requerimento das partes, ou o juiz aplicar a sanção, de ofício. Autor, réu ou interveniente responderá pela má-fé, segundo o artigo 16 do CPC. No caso de credor litigar por dívida já paga, deverá ser condenado a pagar em dobro os valores pleiteados. Credores que pleitearem valores indevidos podem ser condenados ao pagamento do valor cobrado indevidamente. O juiz pode condenar o litigante de má-fé independente de um pedido nesse sentido.
Sobre o rigor que deve ser dado ao tema, o professor Luiz Padilla defende:
- Conforme comentários que inserimos na Revista de Processo 64, a Acórdão do TARGS que aplicava a pena de litigância de má-fé, para ser exemplar, como é do espírito da lei que proscreve a litigância deletéria, a penalização deve ocorrer com tintas fortes e carregando nas tintas (tomada emprestada expressão já consagrada no magistério de Araken de Assis, quando tratou das "astreintes" no direito do consumidor).
- Isso se justifica, em especial, quando caráter vazio da postulação, sem qualquer desforço de argumentação, muito menos de prova, e cuja tese sofre de testilha intestina, denotam mero intuito protelatório.[5]
Colômbia
[editar | editar código-fonte]A Colômbia possui uma situação acerca do tema mais parecida com a do direito brasileiro, de modo que há a enumeração expressa de diversos casos em que se pode considerar a litigância de má-fé.[1]
França
[editar | editar código-fonte]Na França, não há disposição expressa sobre a litigância de má-fé, de modo que apenas alguns atos são reprimidos, como por exemplo, apelações consideradas abusivas.[1]
Itália
[editar | editar código-fonte]O Código de Processo Civil prevê a condenação do litigante vencido ao ressarcimento dos danos, caso tenha agido ou resistido, em juízo, com má-fé ou culpa grave. Entretanto tal hipótese condenatória só ocorrerá a requerimento da parte adversa. Há previsão expressa sobre o dever de lealdade e probidade, de modo que a legislação italiana alinha ao mesmo patamar a má-fé e a culpa grave.[1]
Portugal
[editar | editar código-fonte]A legislação portuguesa elenca os casos considerados como de má-fé processual, tais como a conduta da parte que deduz pretensão ou oposição, cuja falta de fundamento não devia ignorar. A condenação, nestes casos, é a de multa e indenização à parte contrária, o que deverá por esta última ser requerido. Para a consideração da litigância de má-fé, é necessário, além disso, que a conduta maléfica possua dolo ou negligência grave.[1] O advogado pode ser condenado solidariamente com a parte, nos casos onde houver da conduta faltosa.[1] Também há expressa proibição sobre o abuso do direito de demandar.[1]
Referências
- ↑ a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z Lilian Oliveira de Azevedo e Sheila de Andrade Ferreira. Orientador: Prof. Adroaldo Leão. «Litigância de má-fé». Consultado em 1 de janeiro de 2021
- ↑ a b Rosemary Brasileiro. «Considerações sobre a Litigância de má-fé no Processo Civil». Consultado em 1 de janeiro de 2021
- ↑ Luiz Roberto Nuñes Padilla, Professor na Faculdade de Direito da Ufrgs, ex-professor da Faculdade de Direito da Furg e do Curso de Preparação à Magistratura do Trabalho da Amatra-IV, ex-Procurador do Estado Coordenador da Procuradoria Regional de Caxias do Sul, Especialista em Direito Processual, Membro do IARGS e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. «Litigância de má-fé no CPC reformado». Consultado em 1 de janeiro de 2021. Cópia arquivada em 1 de janeiro de 2021
- ↑ Luiz R. Nuñes Padilla, "Litigância de má-fé" in Revista de Crítica Judiciária, Leud, 1989, v. 5, p. 199/220
- ↑ a b Luiz R. Nuñes Padilla “in” Revista de Processo, RT abril-junho de 1995, a. 20, v.78, p.101-107 e Revista Trabalho e Processo, Saraiva, São Paulo, junho de 1995, v. 5, p. 26-33 - [1]
- ↑ a b c Migalhas (3 de fevereiro de 2009). «"Futebol sem deboche não dá!", diz juiz do RJ». Consultado em 1 de janeiro de 2021. Cópia arquivada em 1 de janeiro de 2021
- ↑ a b Priscyla Costa (9 de agosto de 2008). «Torcedor processa jornal por brincadeiras e é multado». Consultado em 1 de janeiro de 2021
- ↑ http://www.artigonal.com/direito-artigos/litigancia-de-ma-fe-na-justica-do-trabalho-1043888.html
Notas
- ↑ Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou. (NCPC. Lei 13.105 de 16 de março de 2015)
- ↑ CPC Art 18, Parágrafo segundo, Alterado pela Lei 8.952-1994.
Bibliografia
[editar | editar código-fonte]- NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Comentado. 3ª Ed. São Paulo-SP: Revista dos Tribunais, 2005.